Nota de introdução

Este artigo é meramente uma síntese minha, alguém que não vive com os problemas que as pessoas trans enfrentam regularmente; por isso, antes de mais nada, encorajo quem se depare com este documento a ler artigos recentes escritos por pessoas LGBTQ sobre a horrível torrente de ódio que têm recebido. Conhecer a experiência e vida de pessoas trans é essencial numa altura em que a existência delas é posta em causa.

Este texto contou com o input e revisão da @catia43.

As vidas trans importam - contextualização e factos para combater a desinformação

A celeuma generalizada dos comentadores conservadores

O espaço de comentário em Portugal viu-se, recentemente, com um novo alvo nas mãos - a comunidade trans. Esta tendência não é particularmente nova: tal como muitas tendências conservadoras em Portugal, foi importada de sítios como os EUA e UK com alguns anos ou meses de atraso. A parte curiosa é que Portugal não tem propriamente os seus casos de ultraje - todos os casos de ultraje são importados. Por esta razão, os opinion makers em Portugal ficam presos num mundo à parte, a manufacturar controvérsia para um povo que, na sua maioria, não terá nunca visto ou reconhecido alguém trans. Não é por acaso que o discurso “antigénero” tem crescido nos últimos anos.

A cavalgar esta tendência e aliados a uma sede de popularidade, vários comentadores conservadores fizeram o desfavor de contribuir para um debate que, em termos práticos, não lhes diz grande respeito. Desde comediantes falhados/empresários abusivos como José Diogo Quintela ou Tiago Dores até transfóbicas e homofóbicas a tempo inteiro como Maria Helena Costa, passando pelos tudólogos do costume como Henrique Raposo ou até mesmo José Pacheco Pereira. A verdade é que, em grande parte, estes artigos baseiam-se em rumores elevados a facto ou em mentiras e propaganda transfóbica. Estas diatribes têm intenções claras - por um lado, a criação de um bicho papão a partir da comunidade trans sem que grande parte dos portugueses perceba muito bem do que se trata. Por outro lado, a vitimização dos colunistas (um grupo quase exclusivamente composto por homens brancos, cis e heterossexuais) quando são confrontados por fazerem afirmações transfóbicas e denunciação de uma suposta “cancel culture” que parece nunca funcionar. Talvez um exemplo claro desta tendência pós-verídica seja o de Clara Ferreira Alves ou João Miguel Tavares, que usam os múltiplos espaços de comentário que têm para declarar que estão a ser cancelados. Mas estas considerações sobre a “cancel culture” são apenas divagações da minha parte - o foco deste texto é outro.

A manufactura da controvérsia

Apesar de ser importante perceber de onde vem este discurso transfóbico, o meu interesse é meramente o de refutar, com análises e dados empíricos, as mentiras propagadas sobre a comunidade trans. Nas próximas secções, os títulos referem-se aos mitos e não a opiniões que eu tenha; apenas quero nomear claramente o objecto da crítica antes de proceder a desmantelá-lo.

“O género é idêntico ao sexo/binário/definido à nascença e ser trans é um desvio da normalidade”

Este mito é um conjunto de mitos - o da equivalência entre género e sexo, o da binarização do género e do sexo e a do género ser um monolito definido à nascença. É importante perceber primeiro o que é o género e sexo, dois conceitos diferentes que interagem ao longo das nossas vidas.

O sexo é, de forma simples, o conjunto de características genéticas, hormonais, gonádicas e genitais que permitem classificar indivíduos como “mulher”, “homem” ou pessoas com diferenças no desenvolvimento sexual. O género é tipicamente considerado o obverso social do sexo - por outras palavras, é a maneira como certas características (de masculinidade e feminidade) são manifestadas no dia-a-dia para e com a sociedade. Como tal, não há género - sejam papéis de género ou identidade de género - fora da sociedade em que estamos inseridos. Daí o género ser considerado uma construção social - um fenómeno que emerge não do indivíduo mas com a sociedade e se manifesta através de indivíduos. Outros exemplos de construções sociais são a moda (tendências sasonais que decretam o vestuário e calçado que são populares) ou a nação/nacionalidade (uma união de indivíduos baseada em geopolítica e uma série de traços culturais). O facto de estas características não serem apenas ou puramente intrínsecas ao indivíduo não significa que não existam - apenas quer dizer que a sua existência é indissociável da sociedade.

Podemos também transpor este conceito para os papeis que a sociedade espera de indivíduos de diferentes géneros (isto não constituem opiniões minhas; apenas reflito algumas expectativas sociais) - até há poucos anos a ideia de que a mulher devia ficar em casa a cuidar dos filhos era relativamente prevalente e continua a ter alguma prevalência nos dias de hoje. De forma semelhante, é esperado que os homens detenham um maior poder dentro do lar e na regência de estados ou nações. Para uma sociedade liberal e meritocrata (como o Ocidente gosta de se retratar) a reversão destas tendências seria de maior importância visto que, historicamente, estes papéis levaram a desigualdades que não são explicadas pelo desempenho individual de cada pessoa. No entanto, não vemos isto a acontecer a um ritmo considerável: muita gente acredita que não há necessidade de mudança, que certos aspectos da mudança pertencem a uma dimensão na qual a história - e qualquer forma de progresso - não podem tocar. No entanto, qualquer construção social é móvel: a moda mudou ao longo de gerações, tal como a maneira de exprimir a nacionalidade portuguesa ou até mesmo os papéis de género e, consequentemente, aquilo que é o género.

Aqui está aquele que é o ponto de contenção para o conservadorismo neoliberal: na sua maneira típica (“eu não sou transfóbico mas…”), o conservador evita ao máximo desvios de qualquer status quo; o neoliberal vê questões como o género, a raça, a classe ou o mérito (para nomear alguns) como intrínsecas ao indivíduo. Disto surge a conclusão lógica: desvios do normal não passam de vontades individuais que em nada devem motivar mudanças no status quo social.

Esta corrente de pensamente quer-nos fazer acreditar que ser transgénero é uma espécie de produto do final dos séculos XX e XXI. Contudo, e apesar da palavra transgénero ser recente, a identidade da pessoa transgénero não o é - foram encontradas campas com restos humanos com fisionomia masculina mas roupa feminina com mais de 4.000 anos; há representações pictoriais de um “terceiro género” - uma pessoa com seios femininos e genitais masculinos - que podem ter até 9.000 anos. A primeira operação de mudança de sexo ocorreu no início do século XX. Ao longo dos anos 60 e 70 houve inúmeras demonstrações pelos direitos das pessoas trans. As pessoas trans não são uma espécie de produto do “pós-modernismo” como muitos comentadores conservadores insistem; são pessoas como quaisquer outras, com uma identidade de género diferente da do sexo com que nasceram - não são nem podem ser armas de arremesso político e demagógico.

“O sexo é binário”

O sexo é tipicamente concebido como algo binário. No entanto, pessoas com diferenças no desenvolvimento sexual (por vezes designadas de pessoas intersexo) criam divergências importantes naquilo que é o carácter binário do sexo. Portanto, o sexo tal como o género, não é binário. Há inúmeras condições - como diferenças nos níveis hormonais e mutações em genes ou cromossomas específicos que provocam desvios do tradicional binário entre homem e mulher. Algumas estimativas mais liberais apontam para que 1.7% de todas as pessoas sejam intersexo, mas estima-se que 0.5% de toda a população (1 em 200 pessoas) tenha variações sexuais ou reprodutivas identificáveis a nível clínico. Para complicar ainda mais a suposta binariedade, estudos que quantificaram a maneira como os cérebros humanos funcionavam entre homens e mulheres cis e pessoas trans mostraram que o cérebro de pessoas trans é diferente daquele observado em pessoas cis, assumindo tipicamente um fenótipo médio entre o homem e a mulher.

Há portanto evidências fortes de que o sexo se manifesta num espectro. Mas porque é que tanta gente insiste no oposto? O argumento de muita gente é que não existem pessoas intersexo em números suficientes para justificar o desuso do tradicional binário; no entanto, uma mulher com mais de 1,80m é, estatisticamente, mais incomum do que uma pessoa intersexo, e no entanto continuamos a considerar possível que haja mulheres dessa altura. Diz-se que no mundo há entre 1% e 2% de pessoas ruivas, mas ninguém diz que a raridade relativa das pessoas ruivas é insuficiente para que seja considerada uma cor de cabelo por si só; porque há-de o sexo ser diferente? É difícil encontrar uma justificação plausível que motive a exclusividade do sexo neste aspecto que não parta de algum viés pessoal ou social.

“Pessoas trans têm uma maior taxa de suicídio do que o resto da população”

Esta afirmação não está necessariamente errada, mas a sua descontextualização é perigosa - comparar pessoas trans com o resto da população neste aspecto seria como dizer “pessoas que são tratadas para cancro da próstata com terapia radiofarmacêutica têm uma taxa de mortalidade maior do que o resto da população”; é uma comparação absurda! Não podemos avaliar a eficácia de um procedimento médico ao compará-lo com o resto da população: a comparação tem de ser feita entre pessoas na mesma posição.

Este facto - receber tratamento que afirme o género de pessoas trans - é fundamental para contrariar tendências suicidas na comunidade trans: combatê-lo é tomar passos activos contra a comunidade trans.

Há ainda outro factor importante aqui - porque é que o risco de suicídio, na comunidade trans, é mais elevado? Para entendermos isto é necessário considerar as potenciais causas da depressão. Apesar da pressão social e descriminação sofridas por terem uma identidade que muita gente não reconhece como normal ser evidente, há também um vasto corpo literário que tenta compreender e quantificar estas causas. Realço aqui que a experiência vivida de cada pessoa - trans ou não - constitui um testemunho forte que não deve ser negado.

Postos estes factores em evidência, há algo claro - apesar da experiência de viver num corpo que não corresponde à sua identidade ser um factor que, por si só, contribui para uma saúde mental mais frágil, o apoio social e redes de apoio estáveis, bem como terapias de afirmaçao de género contribuem para melhorias significativas na saúde mental de pessoas trans. Numa comunidade tão vulnerável - 20% da população trans tentou suicidar-se de acordo com um relatório de The Trevor Project, sendo este número ainda mais alto quando consideramos pessoas trans mais jovens. Relatórios como aqueles de The Trevor Project mostram o quão fulcral é permitir que pessoas trans possam exprimir o seu género livremente, bem como a importância de um ambiente familiar acolhedor.

“Pessoas trans arrependem-se quando mudam de sexo”

Esta é, talvez, das mais descuidadas das afirmações porque cai com a menor das análises - este mito afirma que a transição de género ou outros cuidados médicos de afirmação de género não deviam acontecer porque aqueles que passam por eles muitas vezes arrependem-se. Vejamos então o que diz a literatura sobre este assunto, não sem antes definirmos “destransição”. Destransição é uma reversão completa ou parcial de um qualquer cuidado de afirmação de género - isto é contrário a uma “transição”, em que há cuidados de afirmação de género. Para uma versão em inglês de grande parte deste ponto recomendo fortemente a consulta deste sítio web. Em baixo eu limito-me a completar minimamente algumas das estatísticas nele.

  • Um estudo no Reino Unido mostrou que apenas 0.47% das pessoas (16 em 3.398 pessoas) se mostraram arrependidos por terem feito uma transição. Contudo, nem todos se deveram a um erro na identidade de género assumida pelos mesmos: factores sociais e complicações físicas (possivelmente devido a um processo de transição pobremente executada). Os autores afirmam que factores sociais representam a causa de maioria dos processoes de destransição.
  • Um estudo feito nos EUA mostrou que há uma taxa de aproximadamente 8% de destransição em pessoas trans. Contudo, mais uma vez, esta análise seria pobre se nos ficássemos por este número - uma análise mais aprofundada mostra-nos que mais de 60% desses 8% (5%) fê-lo apenas temporariamente. Mais importante é o facto de 31% das pessoas terem feito uma destransição porque sofreram descriminação ou assédio e 29% por ter tido maiores problemas a encontrar emprego. Entre 18% e 36% fizeram uma destransição porque foram pressionados a fazê-lo pela sua mãe ou pai, por parceiros românticos, ou de outros membros da sua família. Apenas 5% dos 8% iniciais (0.4%) decidiu fazer uma destransição por sentir que a transição não era para essas pessoas.
  • Na Suécia, foram registrados 15 casos de destransição (2.2% das transições) entre 1960 e 2010. Uma conclusão interessante, observada pelos investigadores, foi a de que as taxas de destransição diminuiram com o tempo - enquanto que 10 destransições foram registradas entre 1960 e 1980, apenas 5 foram registradas nas 3 décadas seguintes.
  • Um estudo holandês mostra algo que confirma o que foi constatado até agora - as taxas de arrependimento ou destransição observadas numa clínica em Amesterdão entre 1972 e 2015 (6.793 pessoas no total) são de, aproximadamente, 0.6% para mulheres trans e 0.3% para homens trans.
  • Noutro estudo dos EUA, foi registrada uma prevalência de 13.1% nas taxas de destransição entre pessoas trans. Contudo, destes 13.1%, menos de 20% (2.3% das pessoas trans) reportaram razões “internas” como não se sentirem preparades para fazer a transição ou incertezas quanto à identidade de género; os restantes 82.5% deram citam pelo menos um factor externo, nomeadamente pressões sociais, parentais e familiares, violência sexual ou falta de acesso a tratamentos hormonais.

Quando analisadas de perto, estas supostas taxas de arrependimento não se aguentam em pé. Porém, este é um mito recurrente, com uma utilidade muito simples - pretende apenas caracterizar as pessoas trans como indecisas ou como tendo sido apanhadas numa moda ou tendência. A intenção última é a de enquadrar as pessoas trans como um produto de guerras culturais e ideológicas e não como pessoas cuja identidade é descrita há milhares de anos. Para além disso, esta afirmação (a identidade trans como uma moda) já foi desprovada - para tentarem compreender se havia alguma forma de “contágio social” relativo a transições (uma maior discussão sobre e prevalência de pessoas trans levaria a um maior número de pessoas a identificarem-se como trans), um grupo de investigadores tentou comparou o número relativo de pessoas trans ao longo dos últimos anos. Os resultados são claros - este número tem vindo a decrescer! É portanto absurdo - para além de desumano - falar de pessoas trans como se fossem meras vítimas de uma moda ou tendência.

“Os homens dizem que são mulheres e vão para espaços femininos violar mulheres”

Esta afirmação parte de uma longa tradição europeia de usar uma sátira do feminismo para criar medo de um outro - quem não se lembra de ouvir comentadores a motivarem islamofobia com base numa ideia de mau tratamento da mulher? Nos EUA, Trump caracterizou imigrantes mexicanos como violadores, pretendendo usar a mulher como um adereço para motivar pessoas a serem contra a imigração de mexicanos para os EUA.

Desta vez, o alvo da generalização é outro: a mulher trans, que, diz o mito, é apenas um homem vestido de mulher que se quer aproveitar de mulheres indefesas em espaços femininos como casas de banho. Mais uma vez vemos a preocupação pela mulher a entrar em cena, mas apenas apenas acidentalmente - serve apenas para motivar descriminação (não quero com isto dizer que devamos evitar preocupações com a mulher ou que o papel do feminismo é irrelevante; apenas que a “defesa” da mulher nestas demagogias é um ultraje argumentativo e não concerne de todo a mulher).

Para além disso - e não que isso possa motivar possíveis casos de assédio sexual ou viola - pessoas trans estão em maior risco de sofrerem agressões em casas de banho do que pessoas cis. Entre crianças e jovens, há dados que apontam para um maior número de vítimas de assédio sexual trans quando estas pessoas são impedidas de usar as casas de banho do género com que se identificam, sendo este número superior às taxas de assédio sexual em casas de banho observadas na população geral. 60% das pessoas trans evita usar casas de banho públicas por já terem tido más experiências associadas à sua identidade quando as frequentavam. Num autêntico caso de bizarria, um homem trans foi forçado a usar a casa de banho das mulheres, tendo depois sido agredido por o fazer. Noutros casos, a identidade sexual de pessoas trans foi usada para levantar cruzadas contra as pessoas trans no geral, sem haver qualquer ligação entre identidade e assédio sexual. É importante dizer que as pessoas trans não são incapazes de cometer assédio sexual - há casos reportados e ignorá-los seria apenas participar numa negação de factos inconsequente. Contudo, não há evidência que nos leve a acreditar que o fazem com a mesma ou maior frequência do que o resto da população, sendo ainda vítimas (mais) frequentes de assédio e abuso sexual. Finalmente, devemos relembrar que 8 em cada 10 violações são cometidas por conhecidos da vítima e 33% de todas as violações são cometidas pelo parceiro da vítima e que 67% das violações são cometidas na casa da vítima ou na casa de um familiar. Se aqueles que estão “preocupados com as mulheres” estivessem verdadeiramente preocupados com as mulheres com certeza criariam mais e melhores mecanismos de apoio para vítimas em vez de perseguirem raviosamente uma minoria marginalizada.

Conclusão

Alguns dos grandes mitos por detrás da transfobia são meros espantalhos, convenientemente levantados para serem derrotados por falsos cavaleiros. Outros são mentiras danosas que aumentam a agressão sofrida por uma comunidade já vulnerável. É importante combatê-los empiricamente de forma a revelar o viés pessoal de muitos destes comentadores. É frequente ver alguém a usar a autoridade da palavra “ciência” para dar mais força a argumentos pobres e insuficientes. Este pequeno artigo pretende apenas desmascarar quem o faz - a transfobia que assenta em mitos como aqueles apresentados em cima não parte da ignorância mas sim do ódio.

Compreendo também que haja pessoas que sejam também movidas por medo ou receio - afinal de contas, na ausência de vozes trans em espaços públicos, é normal que se assuma que a ameaça pintada por comentadores conservadores seja real. Este artigo é também para essas pessoas, para que possam perceber que os supostos “factos” destes comentadores são um produto de mentes pequenas que não suportam qualquer tipo de mudança.